Desde que me conheço por gente, moramos grande parte de nossas vidas no sobrado da Rua Ordem e Progresso, meus pais, eu e minha irmã Betinha. De topografia íngreme a nossa casa por estar em um nível acima das casas da rua de baixo proporcionava da janela do meu quarto uma visão deveras privilegiada, de lá podia contemplar toda a vizinhança.
No outono admirava o sol se pondo com tanto esplendor que não perdia o espetáculo, mas eram as manhãs de verão que me despertavam maior interesse. Do meu observatório dava para ver a menina do sobrado amarelo, na rua de baixo, brincando com seu cachorrinho no quintal.
Acredito que deveria ter a minha idade, não me recordo quando foi a primeira vez que a vi, sei que trago na memória todos os dias ensolarados em que pude vê-la no período em que lá morou. Até parece que crescemos juntos, porém nunca tivera a oportunidade de conhecer a garota, nem Betinha sabia me dizer quem era ela. Como disse, crescemos juntos, eu no meu quarto, ela lá, em seu quintal.
Todavia, sua permanência no quintal tornara-se mais interessante para um adolescente com os hormônios à flor da pele. Passava horas assistindo ao espetáculo, a minha amiga tomando sol trajando um minúsculo biquíni e eu me perdendo em meus devaneios à exaustão e as espinhas do rosto se alastrando, quem sabe de tanto prestar homenagens à ela.
Embora aquilo tudo se tornasse rotina, eu nunca tive interesse em saber quem era a minha deusa inspiradora, talvez por timidez, vergonha ou sei lá o porquê.
A vida prosseguindo, tomei o meu rumo. Saí de casa e fui cursar faculdade em outro Estado. Devido aos custos das passagens, esporadicamente visitava meus pais.
Betinha também foi embora, para o exterior, casou-se e não quis voltar para o Brasil, enquanto meus pais continuaram residindo na mesma casa, sozinhos. Conclui a universidade e constitui família permanecendo na região onde me formara. Meu pai morreu há alguns anos e minha mãe foi morar com uma irmã na cidade de Araraquara, onde foi sepultada na semana passada.
Hoje, após os falecimentos de meus pais estou de volta para a casa onde passei parte da minha vida para colocá-la à venda. Agora, após tantos anos estou novamente dentro deste quarto que um dia fora o meu mundo. Ele parecia ser bem maior do que realmente o é. Ainda tem as marcas do pôster do meu time fixado durante muito tempo à parede, bem como sinais da velha escrivaninha no cantinho do aposento onde passara parte do tempo estudando. As paredes com suas cores agora desbotadas ainda insistem em revelar que um dia houvera vida no lugar.
Ouço o ruído do tempo ecoando por todo o ambiente. Ainda, tenho a impressão que o cheiro da comida de mamãe permanece no ar. Abro a janela e ao invés de contemplar o sobrado amarelo o que vejo é uma torre de apartamentos obstruindo todo o horizonte outrora deslumbrante e que nada lembra o quintal onde brincava a menina da rua de baixo. O sol já não domina mais o espaço, é apenas uma superfície sombria, sem cor, sem vida.
Fecho os olhos, um vazio toma conta da minha alma. Trago a imagem de um passado de felicidade. A emoção se faz presente e lágrimas escorrem pelo meu rosto. Não consigo me conter, coloco meio corpo para fora da janela e grito com todo o sentimento:
– Onde está você, menina da rua de baixo?
Samuel De Leonardo (Tute)
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